Cassinos, Mercado financeiro, taxa Selic
Existe uma crença muito popular, principalmente entre os desafortunados que perderam dinheiro em investimentos, que o mercado financeiro é um grande cassino.
E se você pensar, realmente faz sentido: eu boto um dinheiro, e meu ganho é proporcional tanto ao quanto eu coloco dinheiro, quanto os riscos de perder.
Neste post iremos ver a diferença fundamental sobre os dois.
Risco e retorno
Primeiro, vamos esclarecer o que eu quis dizer com “riscos de perder”. Nós estamos partindo do pressuposto que tanto o cassino quanto o mercado financeiro são aleatórios: existe uma chance de você ganhar dinheiro e de você perder o dinheiro.
O mercado financeiro não é de fato aleatório, mas efetivamente podemos considerar que sim, afinal, é um sistema caótico de quepende de quantidades astronômicas de variáveis.
Essa relação de risco e retorno já é bem conhecida no mercado. Como eu disse no post anterior, é possível fazer modelos onde a variação de preço é aleatória. Assim, quanto maior a volatilidade dos preços, mais eles vão variar, para menos ou para mais. Assim, eu tenho chances de ter um retorno grande, mas também tem o risco de ter uma perda grande.
Cassinos também possuem essa relação: você verá que os maiores prêmios são justamente os mais improváveis, então até você conseguir um “grande ganho”, você terá várias pequenas perdas, que amontoam a uma “grande perda”.
Cassinos são jogos de soma zero
Para entendermos a diferença fundamental, vamos olhar a dinâmica de um jogo de cassino, tipo um caça-níquel. Eu vou simplificar o caça níquel para ser um modelo binomial: ou você ganha, ou você perde. Vamos supor que a chance de ganhar seja 1%, ou seja: em média, de 100 jogos, 1 você irá ganhar, e 99 você vai perder.
Isso significa que se o prêmio de vitória for 1000 reais, então o preço de uma rodada do caça-níquel precisa ser $\frac{1000}{99} \approx 10.10$ reais, para que esse valor ganho seja pago nas 99 vezes que você perder.
Tecnicamente um cassino na verdade é soma negativa, porque a casa precisa lucrar, então ao invés de 10,10 no ticket, eles poderiam cobrar por exemplo 11,00 reais e ficar com o “troco”.
Mas essa característica de vitórias serem pagas com os perdedores é o que torna o cassino um jogo de soma-zero: nenhum valor “surge” dentro do cassino, todo dinheiro vem de fora através dos perdedores, e volta pra fora com os ganhadores.
No Mercado financeiro há geração de valor
Como dizia Adam Smith, o valor é gerado pelo trabalho. Vamos ver a dinâmica de como alguém ganha dinheiro no mercado financeiro.
Ações
Eu vou começar com o exemplo de ações. Em termos simples, elas são basicamente um papel dizendo que eu vou ter uma participação nos lucros e dividendos de uma empresa. Se eu sei que uma empresa vai lucrar, eu coloco meu dinheirinho nela comprando uma ação, e depois que ela lucrar, eu vendo minha ação, que agora vale mais, e ganho dinheiro.
Isso é interessante tanto para mim, que estou ganhando dinheiro, quanto pro dono da empresa, que está basicamente recebendo um empréstimo de dinheiro (quando ele abre a empresa para o capital aberto e vende as ações).
Essa dinâmica ocorre tanto no mercado de ações, como também em títulos públicos (como o famoso tesouro direto, que irei falar mais a frente), e outras manifestações do mercado financeiro.
O lucro vem da exploração do trabalho
A diferença fundamental para o cassino vem do fato que o lucro da empresa vem do trabalho dos funcionários. Por exemplo numa fábrica de sanduíches:
Vamos supor que o custo total de manutenção da fábrica (o conserto das máquinas, a energia) + os preços da matéria prima (os ingredientes) + sei lá o que seja 1 milhão (1.000.000) de reais por mês. Agora vamos supor que, após o trabalho dos funcionários, foram produzidos sanduíches que valem 1,5 milhão (1.500.000) de reais.
Isso significa dizer que o trabalho gerou meio milhão (500.000) de reais. Aí entra o pulo do gato que permite a existência do mercado financeiro: se fossemos pagar os funcionários o que eles geraram de valor, iriamos pagar quinhentos mil reais para eles. Mas não pagamos tudo isso. Na verdade, os trabalhadores só recebem uma fração do valor que eles geraram com o trabalho, e o resto vai para o dono da empresa.
Drift-rate
No post anterior, eu dei um exemplo de modelagem de preços do mercado conhecido como modelo de Black-Scholes. Nele, havia um termo chamado de “drift”, que eu não dei muita justificativa para além do fato de que os preços costumam crescer exponencialmente.
Bem, esse dinheiro dos funcionários é justamente de onde vem o drift. Como os funcionários sempre estão trabalhando, a empresa está sempre lucrando. A quantidade de valor gerada pelos funcionários é proporcional ao tamanho da empresa, ou seja, o quanto ela vale. Afinal, quanto mais rica uma empresa for, mais ela pode contratar funcionários, e mais ela pode produzir, e portanto lucrar.
No modelo de Black-Scholes, nós presumimos que essa proporção entre a “riqueza da empresa” e “valor gerado” seja constante (que chamamos de $\mu$), então é daí que vem o termo abaixo:
$$ dS = \mu S dt$$
De fato, essa equação tem como solução um preço exponecial: $S(t) = S_0 e^{\mu t}$, o que indica que uma ação sempre tende a crescer seu valor, ou seja, sempre é uma boa ideia investir.
Precificação no mercado financeiro
É importante ressaltar que apesar disso tudo, a precificação da ação na verdade vem da oferta e procura dela, e é assim que você não consegue ficar rico.
Veja, você não é o único que estuda a matemática por trás do mercado, os grandes investidores também sabem disso. Ora, se eles sabem que a ação vai aumentar de valor, então porque vender por um preço baixo?
Isso não significa que você não pode lucrar. De fato, como eu falei antes, investimento sempre é uma boa ideia, porque o retorno esperado é sempre positivo (justamente porque valor está sendo gerado), a questão é que você não pode lucrar muito, acima do normal, veremos mais a frente exatamente o que eu quero dizer com isso.
Teoria do Mercado Eficiente, de novo
Grandes investidores sabem que a empresa vai lucrar, mas será que sabem mesmo? Na verdade, o crescimento de uma empresa é aleatório: pode ser que ele cresça, mas pode ser que ela entre em falência. Ninguém tem bola de cristal para prever o futuro e afirmar com certeza que uma empresa vai valer tanto, nós só podemos fazer estimativas.
Por exemplo, eu diria que tem uma grande probabilidade dela crescer 10%, baixa probabilidade dela crescer 20% ou 0%, etc. A teoria do mercado eficiente diz basicamente que o mercado sabe essas probabilidades, que ele sabe os riscos e retornos que ela pode ter.
Risk/Reward
Antes de vermos como essas probabilidades afetam os preços, vamos ver um caso interessante: um investimento sem nenhum risco. Isso significa dizer que você tem 100% de certeza que você terá um lucro no futuro.
Existe isso? Sim, se chama título público. Mesmo se o governo estiver em guerra, você pode ter certeza que você vai ter seu dinheiro de volta + juros. Esses juros são exatamente seu lucro, e eles são determinados pela famosa taxa Selic (ou outras taxas de juro). Quanto maior a taxa Selic, maior serão os juros, e logo maior será essa taxa de retorno sem risco nenhum.
Oras, se eu posso ganhar dinheiro de graça sem fazer nada, porque eu faria qualquer outro investimento, que existe uma chance não-nula de eu perder meu dinheiro?
É por isso que, se eu quiser que alguém compre minha ação que tem um risco maior, eu preciso vender ela por um preço menor, para compensar os riscos. É daqui que surge a relação de “quanto maior o risco, maior a recomenpensa”, que vimos nos cassinos.
Precificação segundo Black-Scholes
Vamos ver como essa precificação é feita na prática, e não deixar a oferta e procura resolver isso “magicamente”. A equação abaixo é obtida a partir do modelo de Black-Scholes, usando cálculo estocástico:
$$ \ln(S_T/S_0) \sim N \left( \left(\mu-\frac12\sigma^2\right)T, \sigma^2 T \right) $$
Aqui, $T$ é o período de tempo, então $S_0$ é o preço atual e $S_T$ é o preço depois do tempo $T$. Essa equação diz que o log-retorno (o logaritmo da proporção de retorno) é normalmente distribuído. A mediana do preço da ação (o valor mais provável) é:
$$ S_T = S_0e^{\left(\mu-\frac12\sigma^2\right)T} $$
Mas antes eu tinha dado uma outra fórmula, que é a média (o valor esperado, diferente da mediana):
$$ S_T = S_0 e^{\mu T} $$
Ou seja, a volatilidade impõe um custo (mais volatilidade = mais risco). Especificamente, a taxa de crescimento da exponecial diminui em $\frac12\sigma^2$.
Esta diferença de preços é o que faz o mercado diminuir o valor da ação presente. Independentemente do risco, o preço esperado da ação no futuro é $S_0 e^{\mu T}$. Agora, quanto maior o risco, maior a volatilidade e portanto menor será o valor mediano $ S_T = S_0e^{\left(\mu-\frac12\sigma^2\right)T} $, o que significa que existe uma maior chance de eu perder dinheiro, e logo eu só vou comprar essa ação hoje se o preço dela for menor que de outra ação de risco menor.
Taxa de juros
Se o preço de um ativo financeiro depende do valor de outros investimentos de risco menor, significa que o governo consegue influenciar nos preços do mercado através da taxa de juros, como a taxa Selic.
O aumento da taxa Selic não implica apenas em mais lucro investindo em títulos públicos, mas em qualquer ativo, pois o mercado precisa deixar os preços de ações competitivos com o governo. Claramente, aumentar a taxa de juros é muito interessante para o mercado financeiro.
Como isso me afeta?
Lembra que eu disse no meio desse post que o drift rate $\mu$ das ações de uma empresa depende do valor gerado pelos funcionários? Ora, eu acabei de falar que o mercado precisa acompanhar a taxa de juros do país para manter competitividade na precificação de ações.
Isso significa que o mercado vai precisar aumentar seu $\mu$, e isso tem um significado prático bem simples: chicote no seu lombo. Você, trabalhador, vai ter duas opções:
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Aumento de produtividade concreto: se os trabalhadores tiverem mais tecnologia, mais valor será gerado, e isso permite equilíbrio com as taxas de juro.
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Aumento de produtividade falso: aumentar a mais-valia do funcionário, basicamente. Fazer ele trabalhar mais, diminuir o salário dele, cortar o cafezinho, enfim.
A resposta é obviamente a segunda.