Sobre astronomia

Uma breve introdução a esfera celeste

Para começar, é fundamental compreender o conceito de uma esfera celeste. Nos tempos modernos, é entendido que a terra orbita o sol, e o sol orbita um buraco negro no centro da galáxia. Essa noção, apesar de precisa, não é útil para os propósitos da navegação. Por isso, iremos adotar uma teoria geocêntrica. A terra está parada, fixa, e os corpos celestes orbitam em torno dela.

Aí entra a esfera celeste. Para efeitos práticos, podemos assumir que todas as estrelas orbitam a terra, e melhor: todas estão incrustadas na superfície de uma esfera que chamamos de esfera celeste.

Na realidade, o que acontece é que as estrelas estão “paradas”, e a Terra dá uma volta completa de 360° a cada 24 horas, e isso dá a ilusão para nós habitantes da terra que as estrelas estão se movendo ao redor de nós. Para nossos propósitos geocêntricos, porém, vamos dizer que essa “ilusão” é a verdade, e que é a esfera celeste que dá uma volta ao redor da terra a cada 24 horas.

Sendo assim, o que antes era o eixo de rotação da Terra vira o eixo de rotação da esfera celeste. Todas as nossas linhas imaginárias (equador, trópicos e círculos polares) acabam sendo transferidos para a esfera celeste.

Esfera Celeste

Horizonte astronômico

O horizonte astronômico é basicamente o plano tangente a superfície da Terra, porém nós assumimos que a Terra tem um raio irrelevante.

Então, por exemplo, se nós estivermos no polo norte, o plano tangente (o horizonte) será paralelo ao plano do equador, só que 6357 km acima dele. Todavia, como nós assumimos que o raio é pequeno demais (proporcionalmente), podemos dizer que no polo norte, o horizonte astronômico coincide com o equador.

Similarmente, se nós estivermos no equador, o horizonte astronômico vai ser perpendicular ao plano do equador.

Apesar disso, não nos interessa o plano de fato, mas apenas a intersecção que formam com a esfera celeste.

Na imagem abaixo, temos na diagonal o círculo do horizonte de um morador de São Paulo. Como São Paulo fica a 23° de distância do equador, é justo que seu horizonte fique a 23° do horizonte de alguém no equador, que seria um círculo na vertical.

Horizonte de São Paulo

Trilha de estrelas

Como a esfera celeste gira em torno de um eixo, estrelas próximas aos polos quase não irão se mover aos nossos olhos. Para alguém no polo norte (ou sul), o polo celeste vai estar diretamente acima de sua cabeça. Para alguém que está no equador, o polo vai estar em cima da linha do horizonte.

Isso cria um efeito muito interessante ao tirar fotos de longa exposição, que nos permite enxergar como a esfera celeste gira, e o polo de rotação dela. Na primeira imagem, temos uma trilha de estrelas na Grécia. No centro dela, o polo norte da esfera celeste. A estrela visível mais próxima ao polo norte celeste é a estrela “Polaris”, com apenas 1° de erro.

Assim, se um dia você estiver no hemisfério norte (onde o polo norte é visível), e quiser saber sua latitude, basta medir o ângulo entre o horizonte e a estrela Polaris. Para o sul, a estrela mais próxima ao polo sul é a Polaris Australis, com 2° de erro.

Trilha de estrelas 1

Na segunda imagem, uma trilha de estrelas fotografada em Equador. No equador, é possível ver ambos os polos celestes, e eles ficam exatamente sobre o horizonte.

Trilha de estrelas 2

(Créditos para Stéphane Guisard, que fez a foto acima e diversas outras obras na América: http://sguisard.astrosurf.com/ )

A Eclíptica

O sol também “orbita” a terra, e pode ser pensado como mais um corpo na esfera celeste. Porém, além de dar uma volta a cada 24 horas por conta da rotação da Terra, o sol tem outro movimento chamado de “eclíptica”, causado pela translação da Terra.

As estrelas normais estão incrustadas na esfera celeste, “paradas”. O sol, porém, navega através da esfera celeste. Ele não está preso em uma coordenada específica.

O caminho que ele traça pela esfera celeste é de um círculo, que forma um ângulo de 23.4° com o equador celestial. O motivo desse ângulo, na realidade, é por conta do ângulo que o eixo de rotação da Terra tem. Mas para nossos propósitos geocêntricos, lembre-se que a Terra não se move.

Ela dá uma volta completa através da esfera celeste a cada 365 dias. As estrelas que passam perto do sol formam um grupo de constelações que chamamos de zodíaco.

Na imagem abaixo, temos o trajeto da eclíptica através da esfera celeste:

Eclíptica

Na imagem, vemos que em junho o sol fica acima do equador celeste. Isso significa que, em junho, se alguém estiver no polo sul, essa pessoa simplesmente não vai ver o sol. Apesar de somente em setembro o sol chegar ao equador celeste, já em agosto é possível ver a iluminação do sol.

Coordenadas astronômicas

Através da eclíptica também podemos obter a longitude de uma estrela. Sabemos já que a latitude no equador é 0, no polo norte é +90° e no polo sul é -90°. O termo astronômico para a “latitude” celestial é “declinação”, e usa-se a letra grega delta.

Já a nossa “longitude” celestial é chamada de “ascensão reta”, e seu valor 0° é no equinócio de março, quando o sol cruza o equador. A ascensão reta é medida em 24 horas, ao invés de 360 graus, por conta da rotação da esfera celeste.

Coordenadas astronômicas

Sobre astrolábios

A projeção estereográfica

Astrolábios são basicamente um mapa do céu, junto com uma ferramenta de medir a altitude das estrelas. A maneira que esse mapa é feito é através da projeção estereográfica.

projeção estereográfica

Cada ponto $P$ no esfera celeste é mapeado para um ponto $P’$, traçando uma reta entre um dos polos de referência $Q$ (por exemplo, se estivermos no polo norte, usaremos o polo sul celestial), e o ponto na esfera $P$. Perpendicular ao eixo polar, temos o nosso mapa.

Uma propriedade importante é que círculos são mapeados para círculos, e quanto mais próximo ao polo celestial de referência, maior o círculo. Círculos que se aproximam do polo celestial de referência tendem a círculos de tamanho infinito.

Na imagem abaixo, vemos uma projeção estereográfica feita para alguém no hemisfério norte. Assim, o polo de referência é o sul. O trópico mais longe do sul é o trópico de câncer, desenhado em azul. Depois temos o equador em vermelho, e o trópico de capricórnio em verde. Note que, a medida que se aproximamos de polo sul, os círculos crescem. No centro, em amarelo, temos o polo norte.

Por conta disso, o limite do mapa de um astrolábio é normalmente até um dos trópicos. Quanto mais esse limite aumenta, maior fica seu astrolábio (tendendo ao tamanho infinito), e isso é desnecessário.

projeção estereográfica 2

Como referência, assim seria nosso planeta sob uma projeção estereográfica usando o polo sul como referência:

projeção estereográfica 3

Nós já poderíamos começar a colocar nossas estrelas nesse mapa. A estrela Polaris, por exemplo, ficaria perto do pontinho amarelo no centro.

Todavia, de nada serviria um mapa das estrelas sem saber qual pedaço dela eu vou ver quando eu olhar o céu a noite. Para isso, eu preciso desenhar a linha do horizonte de onde estou. Essa linha vai basicamente delimitar qual parte da esfera celeste eu consigo ver.

Vamos supor que eu estou em São Paulo. O Zênite de São Paulo, ou seja, o ponto diretamente acima de SP na esfera celeste, possui declinação aproximada de 23° sul. Por coincidência, o zênite de São Paulo acaba recaindo exatamente sobre o trópico de capricórnio.

Como estou fazendo um mapa no sul, meu polo celeste de referência será o polo norte. Veja que, enquanto antes o círculo mais próximo ao ponto amarelo (polo) antes era o azul (câncer), agora o mais próximo ao polo é o de capricórnio (verde). Isso se reflete no fato do círculo mais interno agora ser o verde, e não o azul.

A Linha da Terra ao Zênite é perpendicular ao horizonte astronômico, como se nota na imagem. A linha cinza é a linha Terra-Zênite, e o círculo cinza é nosso horizonte astronômico.

Horizonte projetado

Note que uma ponta do círculo está próxima do polo sul (amarelo), então acaba saindo próximo a ele na projeção. A outra ponta está próxima ao polo norte (referência), então acaba ficando muito longe do centro da imagem.

Outro aspecto importante é que círculos que não são paralelos ao equador acabam ficando “fora de centro”. A mesma coisa acontecerá com a eclíptica, que veremos em breve.

Mas não é só o horizonte que nos importa, mas sim cada círculo paralelo ao horizonte, diminuindo gradualmente até chegar no ponto zênite:

Horizonte projetado

Essas alturas serão fundamentais na hora de usarmos mapear os céus. A ideia é simples: se eu consigo medir a altura de uma estrela, eu consigo ajustar meu astrolábio para que todas as estrelas fiquem na posição certa. O nome desses círculos é “almucantarat”.

Todas as linhas (equador, trópicos, horizonte, almucantarat, etc.) serão desenhadas em uma parte fixa do astrolábio chamado de “tímpano”. Abaixo, podemos ver elas desenhadas em um tímpano de um astrolábio árabe real:

Linhas no tímpano

(Por acaso esse astrolábio tinha a mesma latitude do que eu fiz, só que é aproximadamente 23° Norte no oriente médio, ao invés de 23° Sul em SP)

Outro tímpano, com as linhas mais claramente desenhadas. Nele também as linhas de longitude (a ascenção reta). Eu não desenhei no meu porque fiquei com preguiça, mas é importante também:

Outro tímpano

As estrelas

As nossas linhas imaginárias (equador, trópicos, horizonte, etc.) foram mapeadas. Elas são desenhadas no chamado tímpano do astrolábio, uma parte fixa dele. As estrelas, porém, não podem ficar fixas. Como dito antes, a esfera celeste se move, então o mapa delas precisa se mover também. A vantagem da projeção estereográfica é que esse movimento de rotação da esfera celeste em torno do eixo vira um giro de um círculo no astrolábio.

Assim, para construirmos nosso astrolábio, primeiro vamos precisar de um disco chamado de “mater”. Nele, vamos fixar o tímpano feito para sua latitude específica, e acima do tímpano, uma grade que indica a posição das estrelas, chamada de “rete”.

E não só as estrelas fixas, mas o sol também está contido na rete. Porém, como dito anteriormente, o sol não possui uma única posição na esfera celeste: ele possui várias posições ao longo do ano, num trajeto chamado de eclíptica. Essa eclíptica ficará junto da rete, e é um componente essencial dela. Na projeção, ela é um círculo ligeiramente acima do polo note

A rete pode girar livremente para adequar a sua mudança de longitude ou mudança de horário. Ela é feita de uma armação com alguns “espinhos” que apontam para as estrelas, e um círculo da eclíptica. Na imagem abaixo, a eclíptica está graduada e com símbolos do zodíaco.

Rete

Normalmente um astrolábio armazenava mais de um tímpano dentro dele, para adequar para as várias latitudes que você fosse trabalhar. Na imagem abaixo, estão deitados seis tímpanos. Apoiado sobre o livro na esquerda, há a rete, e na direita, a mater.

Componentes do Astrolábio

O medidor de declinação

Atrás do astrolábio havia uma ferramenta para medir a altura de uma estrela ou do sol. Você segura o astrolábio pelo anel na parte de cima, de forma que a gravidade naturalmente coloque ele perpendicular ao chão. Então, você gira um tipo de ponteiro chamado “alidade”, até que você veja a estrela através dele. A alidade é como uma mira de uma arma, você só conseguirá ver a estrela quando os dois buracos estiverem alinhados na reta com a estrela.

Alidade

Medindo a altura de uma estrela

Determinado a altura de uma estrela, você pode ajustar sua rete até o indicador da estrela ficar em cima de um almucantarat que corresponde a medida.

Por exemplo, vamos supor que eu, com meus conhecimentos astronômicos, identifiquei a estrela Aldebaran na constelação de Touro, porque ela é a mais brilhosa daquela constelação. Usando minha alidade, eu medi uma altura de 60° com o horizonte. Eu vou girar minha rete até a ponta da estrela aldebaran cair em cima do almucantaram de 60°, como na imagem abaixo:

Aldebaran

Note que há dois pontos em que você poderia girar a rete. Isso é consequência da minha preguiça em desenhar as ascenções retas.

A régua

A última peça do astrolábio é a régua. Ela é um ponteiro que fica acima da rete, e pode ser usada para determinar o horário a noite, caso você tenha ajustado a rete:

Régua

Encontre no círculo da eclíptica a marcação mais exata que tiver do dia atual. Então, ajuste sua régua para que ela fique alinhada com o dia atual. Ela vai apontar para o horário desenhado na mater.

Por exemplo, vamos supor que hoje é algum dia do começo de agosto. Eu vou então alinhar minha régua para ela passar em cima da região de agosto na eclíptica, que pode ser visto pelo símbolo de leão do zodíaco (♌︎).

Régua

Na ponta desta régua, estariam as marcações de horário. Como dito anteriormente, eu sou preguiçoso demais para calcular todas as longitudes e a marcações de horário para meu astrolábio, mas confie em mim, ele iria apontar para alguma hora do dia (0-24).

Dessa forma, era possível calcular o horário até de noite, quando o sol não era mais visível.

Também é possível fazer tudo vice-e-versa, e encontrar a posição das estrelas, caso você já saiba o horário e dia.

Mapear as estrelas também era importante para determinar sua latitude no mar. Afinal, nem sempre você vai ter uma estrela Polaris a vista, então usar outras estrelas (e até o próprio sol) era essencial para as navegações.

História

Não sou historiador. A wikipédia tem um artigo muito maneiro detalhando a história caso seja seu interesse. Eu sou mais da ciência mesmo.

Dito isso, vou colocar alguns documentos interessantes que encontrei enquanto estudava sobre o assunto. Todos estão disponíveis no site archive.org.

Primeiro, em um livro espanhol de 1591, chamado “Compendio del arte de nauegar”, mostra como era a visão da época sobre o universo:

Compendio del arte de nauegar

O universo era como uma cebola. No núcleo, a Terra, coberta por água, depois ar. Logicamente, sobra o quarto elemento, o fogo, que ficava em cima do ar. Essas quatro camadas eram chamadas de parte “Elemental”, da esfera (a cebola) do Universo.

Depois disso, haviam mais dez camadas, chamadas de parte “Celeste”. Elas eram feitas de acordo com o movimento de cada astro no espaço. Para eles, havia uma camada no céu dedicada a Lua, e acima dela, uma camada para Mercúrio. Cada uma girava independentemente uma da outra, e tinham um certo período de rotação.

As três últimas camadas, Firmamento, Cristalino e Primeiro Móvel, se referem respectivamente a: camada das estrelas, a camada das “águas superiores” onde se apoia o firmamento, e a camada que movimenta todas as outras.

Depois dessa cebola, existe o “Cielo Empireo”, que é o paraíso cristão.

Hoje em dia esse modelo geocêntrico simplesmente não funciona mais para os planetas. O sol de fato realiza uma orbita circular ao redor da Terra, se usarmos a Terra como referêncial. Mas os planetas não.

Compendio del arte de nauegar

Aqui já são mostrados as ferramentas usadas na navegação: Astrolábio e quadrante. Ambos podiam ser usados para medir a latitude do navegador. O quadrante é uma ferramenta no formato de um quarto de um círculo:

Quadrante 1

Existiam também versões gigantes para medidas mais precisas:

Quadrante 2

Que futuramente foi substituído pela Sextante, que tem vários ajustes para obter a medida de ângulo mais precisa possível:

Sextante

Mas a ciência não era de toda rudimentar. Por exemplo, o livro “Tratado da sphera” (tradução portuguesa de Sphaera mundi de Joannes de Sacro Bosco, 1230), traz um exemplo de como podemos saber que a Terra é redonda, com direito a ilustrações de como as fases da lua funcionam:

Redondeza da Terra

Ou seja, pessoas em diferentes latitudes do planeta veem o céu de forma diferente. As sombras em um mesmo horário eram diferentes, etc. A redondeza da Terra era conhecida antes de Cristo. Idem para o fato da lua ser uma esfera iluminada pelo sol.

O geocentrismo não era absurdo. Na verdade, era a melhor teoria científica que tinham, considerando que para chegar no heliocentrismo foi necessário medidas muito precisas no movimento dos planetas, que mostraram trajetos impossíveis num modelo geocentrico. Apesar da revolução copernicana já ter começado em 1500, demorou até ser aceita pelo público, por ser uma mudança de paradigma muito grande, aliada com um pouco de religiosidade.

Enfim, isso é tudo.

Planejo escrever um post sobre a antiga arte da trigonometria esférica, e como todas as medidas que ensinei hoje podiam ser usadas na navegação, usando cálculos geometricos mais avançados.


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